O tecladista francês Jean-Michel Jarre, está comemorando 75 milhões de visualizações do seu concerto virtual Welcome To The Other Side, que foi ambientado num cenário digitalizado da Catedral de Notre-Dame. O show ao vivo, combinou efeitos visuais de concertos em Realidade Virtual, com uma performance de estúdio ao vivo. Esse número leva em conta as visualizações de várias plataformas, incluindo VRChat, TV e rádios francesas e internacionais, plataformas de mídia social como Facebook, YouTube, Twitter, Weibo, Bilibili e Douyin. A União Europeia de Radiodifusão (EBU), disponibilizou o evento gratuitamente para seus parceiros nacionais de TV e rádio em todo o mundo.
BEM-VINDO AO OUTRO LADO
A ideia do Welcome To The Other Side surgiu após o show Alone Together, em junho de 2020. O concerto foi um sucesso, mas como foi preparado e realizado em apenas três semanas, ocorreram alguns problemas. Louis Cacciuttolo, chefe da VRrOOm, conversou com Jarre sobre a possibilidade de organizar um novo show, desta vez com um tempo maior para preparar e organizar toda a produção, para que tudo saísse conforme o planejado. Jarre, que é um inovador de coração, concordou imediatamente, e houve muita conversa sobre como fazer esse novo evento, que poderia realmente mostrar as potencialidades dos shows em Realidade Virtual, e perceber o que Jarre tinha em mente.
Muitas ideias surgiram. Foram avaliados diferentes idiomas-alvo, diferentes plataformas, dias de eventos diferentes, etc. Mas sempre com duas constantes nos rascunhos: Jean-Michel Jarre e Notre-Dame. Sempre houve essa ideia de misturar essas duas obras-primas francesas tão diferentes (Jarre é um artista moderno e Notre-Dame é uma obra-prima antiga), mas tão semelhantes (ambas são admiradas): deixar as pessoas entrarem novamente em Notre-Dame para um evento especial no Réveillon. Não se sabe quem tomou a decisão, mas foi decidido fazer uma celebração na virada do ano, para dar mais importância ao evento, voltado principalmente para o mercado europeu. E assim foi feito.
O trabalho começou em setembro de 2020, e mais ativamente a partir de outubro. Três meses é muito melhor do que as três semanas que a produção teve para o Alone Together, mas ainda é pouco tempo para esse tipo de performance. Quando Jvan Morandi, o profissional que cuidou da coreografia das luzes, ouviu sobre o show, seu comentário foi: “É para o Verão de 2021, não é?”. Quando ele descobriu que era para o final de 2020, ele disse: “Vocês são totalmente loucos”. Sim! Toda a produção do show sabia que era loucura.
COMO ISSO FOI FEITO?
Uma vez que ficou decidido que o show seria realizado, começaram alguns experimentos para entender o que realmente era factível dentro do VRChat. O VRChat foi escolhido como plataforma, porque é o mais confiante (os maiores projetos da equipe da VRrOOm foram feitos lá), um dos mais poderosos e versáteis, e também porque permite o uso do Unity, um motor de jogo que toda a produção conhece muito bem. Além disso, o VRChat tem uma grande comunidade, que criou várias ferramentas que foram muito úteis na preparação do show.
O cenário começou a ser montado no Unity. O modelo da catedral foi simplificado e otimizado para ser usado noVRChat pela Manifattura Italiana Design (MID), e então, começou a ser preenchido com os elementos do concerto. Vincent Masson produziu as incríveis animações 3D, enquanto Jvan Morandi trabalhou nas animações de holofotes, e ambos trabalharam no vídeo 2D projetado nas paredes da catedral. Quanto ao rastreamento dos movimentos de Jean-Michel, foi utilizado um traje mocap compatível com o SteamVR, que garantiu melhor precisão no rastreamento do corpo do artista, além de luvas de rastreamento para registrar seus movimentos na reprodução dos instrumentos.
Uma vez que todo o material estava pronto, chegou a hora da montagem no Unity, para depois otimizar tudo. Esse foi o trabalho realizado principalmente por Lapo Germasi e Victor Pukhov da MID. O VRChat não só tem os requisitos de um frame rate suave, mas também requisito de espaço: se a cena geral pesa mais de 300Mb, seus usuários levarão muito tempo para baixá-lo, e às vezes, as coisas também podem falhar.
Então, tudo foi finalizado e alguns itens foram acrescentados:
– Todas as temporizações: Os holofotes, video mapping, etc… tudo deve ser acionado na hora certa e estar em sincronia com a música. Isso exigiu algumas soluções criativas dentro do VRChat;
– Todas as interações: Não se pode produzir um mundo VRChat sem interações. As interações são boas para o engajamento dos usuários, e também para justificar a sensação de estar em Realidade Virtual. Por isso foram adicionados itens para serem feitos enquanto se assiste ao concerto (como a capacidade de fazer o público falso aparecer em estrelas coloridas);
– Todos os elementos necessários para filmar o vídeo: Como o concerto foi no VRChat, e a produção não queria fornecer um streaming plano de um único ponto de vista, foi criado um sistema de câmeras complexo dentro do VRChat, para que Georgy Molodotsov e Maud Clavier pudessem trabalhar em uma ótima versão 2D do concerto. Foi utilizado um projeto de software de código aberto para inicializar o sistema de câmeras. Foi usado também VRCLens para as fotos tiradas à mão com efeito de profundidade e um gravador de vídeos 360° da VoxelKei, para filmar os vídeos mostrados no mundo pós-festa, cuja experiência foi projetada por Denis Semionov, que também cuidou de esculpir todo o cenário.
OS VÁRIOS TIPOS DE CONCERTOS
No Alone Together, o verdadeiro Jean-Michel Jarre estava em um quarto. No Welcome To The Other Side, aconteceu algo semelhante. No VRChat, uma pessoa só pode estar em uma única instância do mundo, que é uma sala com 40-60 pessoas, e não é possível contornar esse limite. Então, enquanto o verdadeiro Jean-Michel estava tocando no Studio Gabriel em Paris, apenas algumas pessoas poderiam realmente estar lá com ele. Todas as outras pessoas que assistiram ao concerto, observaram uma réplica dele.
Essa verdade decepciona algumas pessoas, mas novamente, devido às limitações da plataforma, ou se realiza um concerto só para quarenta pessoas, ou se faz um evento para milhares de pessoas, mas com apenas quarenta estando com o artista ao vivo no estúdio. E como o objetivo era reunir o maior número possível de pessoas nesse grande momento, fomos para o segundo caminho. Quando as plataformas de Realidade Virtual permitirem o acesso de 10.000 pessoas em um único ambiente, será possível oferecer o mesmo desempenho para todos ao vivo e ao mesmo tempo. Mas isso pode demorar anos para acontecer.
Da última vez, foi oferecido uma experiência incrível aos usuários “VIP” e uma experiência muito medíocre para todos os outros. Desta vez, isso foi evitado: todos tiveram uma experiência muito similar e usufruíram desse grande show. Assim, mesmo com três tipos diferentes de salas para PC, a experiência em cada uma delas foi muito semelhante.
As salas para PC foram divididas desta maneira:
– A sala oficial, usada para gravação e streaming do show: A diferença com as outras é que esta foi a sala com Jean-Michel se apresentando ao vivo e com os mais altos níveis de performances visuais (de modo que a qualidade do vídeo 2D era de primeira linha). Tudo jogado em sincronia para todas as pessoas na sala, e não importava a taxa de quadros ou o peso do mundo, porque era um mundo para pessoas que, com certeza, tinham um PC muito performático. Nesta sala foi instalado o complexo sistema de câmeras para os vídeos do YouTube, e mais o “público falso”, para dar a impressão de uma catedral mais cheia nos vídeos;
– Algumas salas VIP: Quase idênticas à sala oficial, mas com um avatar que não era o verdadeiro Jean-Michel, e performances visuais ligeiramente inferiores, para garantir um melhor frame rate para os visitantes. A experiência foi tocada em sincronia para todos, e o momento da meia-noite, foi em sincronia com a meia-noite real;
– Os mundos públicos: Quase idênticos às salas VIP, com a única diferença de que a experiência não estava em sincronia com os outros usuários no momento da meia-noite. A performance foi gravada e atuou como uma caixa de música: em qualquer momento, você poderia chegar ao mundo VRChat público, clicar Start concert e assistir ao show, da primeira à última música. Você poderia estar lá com outras pessoas na sala, mas todos estavam vendo o seu próprio momento do show, dependendo de quando eles apertaram o botão Start concert. Essa foi a melhor maneira de evitar os problemas de sincronização que aconteceram no Alone Together, e funcionou perfeitamente.
A experiência em todos os tipos de salas foi quase idêntica, e a equipe ficou satisfeita por democratizar esse show de Realidade Virtual gratuitamente, para todos, em todas as plataformas. Desta vez, a experiência funcionou e ninguém reclamou do show não aparecer.
Houve um momento durante a fase de design, em que Jean-Michel Jarre e outras pessoas, questionaram se não era mais seguro fazer apenas uma versão 2D do show, devido ao tempo limitado que a equipe tinha para deixar tudo pronto. Após uma conversa com toda a equipe, todos concordaram que, se é um “show em VR”, deveria ser realizado em VR. Jarre foi tranquilizado de que seria possível fazê-lo, mesmo no tempo limitado que a equipe tinha. E essa foi a melhor decisão, porque dessa forma, foi realizado um grande concerto, completamente em Realidade Virtual, para pessoas dentro e fora da Realidade Virtual. Só é possível fazer algo incrível se você estiver disposto a correr os riscos para fazer isso. Todos concordaram que era a melhor maneira de curtir o show.
OS PROBLEMAS DO RÉVEILLON
Fazer um show em Realidade Virtual no Réveillon é legal, pois faz parte de um grande momento, onde se comemora o Ano Novo com muitas pessoas de todo o mundo. Mas trouxe alguns problemas:
– Um dos membros da equipe comentou: “Eu arruinei completamente o jantar com minha família. Comi super rápido, e depois voei para o meu laptop para resolver alguns problemas com o ‘mundo pós-festa’. Além disso, minha única celebração, foi ir para a sala de estar quando faltavam 15 segundos para a meia-noite pra dizer ‘Feliz Ano Novo’ , e depois voltei para o show. Foi triste não poder comemorar com as pessoas que amo” ;
– Muitos jornalistas e influenciadores estavam de férias, e por isso, não noticiaram sobre o show;
– Outros VIPs que foram convidados, disseram que tinham outros planos para o Réveillon, e isso foi ruim para a visibilidade do evento;
– Muitas pessoas perderam a notícia do show, e por isso, não compareceram no VRChat. Foram feitos muitos pedidos para uma reprise e isso foi proposto para a equipe;
– A VRChat organizou seu próprio evento oficial para o final do ano, e por isso, deu menos importância ao concerto do Jarre;
– A maior parte da equipe do VRChat estava de férias, então Jarre teve pouca ajuda antes do show e também no dia do show, quando ocorreu um grande problema durante o ensaio final. Outro problema, foram os servidores do VRChat que caíram logo após o fim da festa no ‘mundo pós-festa’. Isso foi um grande risco. O ideal seria pedir ao VRChat para garantir assistência 24 horas por dia, durante 7 dias, incluindo o dia do concerto.
Mas teve algumas vantagens, especialmente na combinação com a pandemia do Covid-19. Quando a equipe trabalhava no concerto, a segunda onda do coronavírus começou na França, e assim todos os outros eventos com a presença de público para o Réveillon foram cancelados. Assim, esse evento ganhou mais importância. Por ser um evento inovador e apoiado pela cidade de Paris, tornou-se o principal evento do Réveillon da capital francesa, e um dos mais importantes de toda a França. Foi transmitido pela BFM TV, teve o patrocínio da UNESCO, foi destaque da EBU, e encontrou espaço na mídia de outros países, como em jornais da Alemanha e até nos canais de notícias italianos. Com muitas responsabilidades nos ombros, mas com a certeza de que poderia entregar um bom produto, toda a equipe ficou feliz com a visibilidade que o evento conseguiu. Até no Brasil o concerto recebeu destaque na mídia: a CNN Brasil exibiu trechos em sua programação, e notas apareceram na Revista Veja, no jornal Estado de Minas, no portal UOL e no site da Agência Nacional.
OS PROBLEMAS DE ESTAR EM UMA CATEDRAL
O cenário para este concerto foi a Catedral de Notre-Dame, uma obra-prima que não é apenas arte pura, mas também um lugar religioso. Isso criou alguns problemas quando chegou a hora de decidir o que colocar dentro.
Quando foi discutido quais interações adicionar, a equipe coçou a cabeça muitas vezes. No Alone Together, Jarre pediu para adicionar algumas ‘pílulas mágicas’ que provocaram efeitos visuais confusos e muitas pessoas adoraram. Jarre queria isso nesse concerto também. Mas… Seria certo usar drogas (ainda que virtuais) em uma igreja? Claro que não. Então as pílulas se tornaram ‘óculos mágicos’, que você poderia usar para ter efeitos diferentes. Um easter egg para cortar o público falso também foi planejado, mas não seria correto fazer algo violento em uma igreja. A solução foi fazê-los explodir em estrelas coloridas como balões. Champanhe também foi pensado, mas a equipe desistiu da ideia por não achar o ambiente apropriado.
UMA EQUIPE TRABALHANDO JUNTOS
Se há algo que deixou todos felizes, é a equipe que trabalhou no projeto. Não há uma única pessoa na equipe que se possa dizer que trabalhou mal. Todos fizeram um grande trabalho, e o resultado final é a prova disso.
A equipe veio do Alone Together, e por isso, havia mais confiança e eles já sabiam como trabalhar juntos. Desta vez, havia também uma manager no projeto (Maud Clavier), e isso foi bom para lidar melhor com todas as chamadas, e a comunicação entre os membros da equipe para definir prioridades.
Jvan Morandi foi o único recém-chegado e ele foi uma grande adição. Ele nunca trabalhou em Realidade Virtual, nunca trabalhou com o Unity e nem no VRChat. No início, ele teve muitas dificuldades em adaptar seu trabalho habitual de projetar a coreografia de luzes e efeitos visuais, de um palco real para a Realidade Virtual. Mas aprendeu rápido, e foi capaz de projetar no final, um grande show de luzes para o concerto. Ele é a prova viva de que qualquer artista que trabalhe em eventos na vida real, pode se adaptar muito rapidamente ao trabalhar em eventos virtuais, dando novas perspectivas profissionais para pessoas que atualmente estão impossibilitadas de trabalhar por causa do coronavírus.
Todos trabalharam para ajudar uns aos outros. Tentaram descobrir como trabalhar juntos da melhor maneira possível, e assim que encontraram o caminho, pegaram o embalo rapidamente.
A melhor coordenação da equipe também foi visível durante o concerto. Uma chamada no ‘Zoom’ foi aberta enquanto o show estava ao vivo, e assim, foi possível notificar imediatamente para os outros, todos os problemas que aconteceram durante o evento. Essa foi uma ideia de Georgy Molodotsov, e literalmente, salvou a equipe quando eles perceberam que estavam em uma sala, enquanto os VIPs estavam esperando por eles em outra. Foi uma ótima ideia que será mantida em eventos futuros.
Ao fazer esse tipo de performance que está na vanguarda, a experiência é muito mais importante do que a capacidade técnica. Plataformas como o VRChat são novas e inovadoras, mas escondem muitos problemas aqui e ali, e é necessário muito empenho para resolvê-los. Fazer eventos em VR nesse momento, é tudo uma questão de fazer compromissos, entre o que você quer fazer, e o que é possível fazer. Você sempre tem que estar pronto para encontrar uma solução para qualquer problema que terá que enfrentar, e encontrá-lo rapidamente. Às vezes significa entregar algo pior do que você esperava, mas você terá que se adaptar à arte dos compromissos.
Por exemplo, no mundo pós-festa foi gasto muito tempo para fazer os guarda-chuvas voadores, onde você poderia pegar um guarda-chuva e voar por toda a praça. Mas, por causa de um bug do VRChat, quando você saía do guarda-chuva, você não podia mais andar. A equipe passou os últimos dias tentando resolver isso, e no final, foi decidido remover essa bela característica, substituindo por um guarda-chuva mágico que fazia você pular alto e ver a cidade de cima. Foi doloroso tomar essa decisão, mas foi a melhor coisa a se fazer para entregar o projeto bem feito.
Outro exemplo: o concerto foi gravado e ficou fora de sincronia nos mundos VRChat públicos. Essa foi uma decisão difícil, mas as outras alternativas eram: realizar um concerto com um avatar horrível do Jean-Michel, ou realizar um concerto onde pelo menos metade das pessoas não poderiam ver a experiência começando (como da última vez). Algumas pessoas poderiam ficar desapontadas com isso, mas a resposta é que você mesmo deve tentar fazer isso. Trabalhando nisso, você perceberia que foi assumido o melhor compromisso possível. É só com experiência é que você pode entender os problemas e encontrar as soluções para eles.
Mais um exemplo: o momento da meia-noite não estava perfeitamente sincronizado com a meia-noite real, devido a um erro no cálculo dos tempos. Fizemos dicas de ferramentas e mensagens para deixar algumas características claras para todos, mas as pessoas não leram e não entendiam da mesma forma. Por exemplo, alguns VIPs ficaram trancados na gaiola inicial, e enquanto na gaiola estava escrito: “Por favor, espere até abri-la. Pode demorar alguns minutos”, eles começaram a pensar que estavam trancados lá por engano. Da próxima vez será necessário tornar todas as coisas mais fáceis de entender, talvez com uma mistura de imagens visuais fortes e mensagens de áudio, juntamente com uma experiência mais fácil de usar. Novas lições aprendidas para os eventos futuros.
O show foi disponível em todas as mídias possíveis: VR, PC, streaming, TV e rádio. Foi gratuito para todos, e disponível no Ocidente e também na China. O show se tornou um dos principais assuntos no Weibo (o Twitter chinês), obviamente por causa da esposa de Jarre, Gong Li, uma das atrizes mais famosas do país e que estava fazendo aniversário no dia do show.
Fonte: Skarredghost.com
THE MAKING OF WELCOME TO THE OTHER SIDE – PARTE 2
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