OXYMORE: ENTREVISTAS DE JEAN-MICHEL JARRE PARTE 2

Padrinho da música eletrônica Jean-Michel Jarre (Imagem: Getty)

Essa compilação de entrevistas está dividida em 2 páginas

21/10/2022 | Por: Lily Moayeri

Onde você está e como é o cenário?

“Paris, no meu apartamento, onde moro e onde tenho o meu home studio. Meu verdadeiro estúdio de gravação fica fora de Paris, não muito longe. Estou no 8º arrondissement. Todo parisiense acha que está morando no centro da cidade. O 8º arrondissement é legal, porque fica no lado oeste e é fácil chegar ao aeroporto. É mais business, mas legal ao mesmo tempo.”

Qual foi o primeiro álbum ou single que você comprou para si mesmo e qual foi o meio?

“O primeiro disco que comprei foi um single de Ray Charles, ‘Georgia on My Mind / What’d I Say’. Sempre fui fascinado por texturas na música, mesmo em tenra idade. O que realmente me impressionou no som de Ray Charles foi que ele definitivamente não só estava trabalhando na textura, em sua voz, mas também em seu som como produtor. Ele estava produzindo som de uma forma muito inovadora naquela época – ainda em alguns aspectos inovadores agora, essa mistura de espiritual com R&B e arte de rua. Ele tinha esse paradoxo. Meu novo álbum, Oxymore, é a ideia de juntar duas coisas que não foram feitas para ficarem juntas. Ray Charles é um exemplo muito bom de oximoro ao colocar texturas ‘groovy’ e aspecto espiritual, mas também alegria e melancolia. Canções alegres, mas atrás delas se esconde a tristeza. Eu realmente fui tocado por isso.”

O que seus pais faziam da vida quando você era criança?

Minha mãe foi uma mulher extraordinária. Foi uma grande figura da Resistência Francesa durante a guerra. Ela foi pega pelos nazistas três vezes e escapou nas três vezes, até mesmo do campo de deportação. Foi a personagem central da minha infância, porque meu pai nos deixou quando eu tinha cinco anos, e por muito tempo não tive contato com ele. Ele foi meio que uma figura abstrata para mim. Minha mãe desempenhou, com muito talento e sutileza, o papel de mãe e pai. Quando você é filho único, é sempre um problema ter uma mãe que não seja muito invasiva, muito intrusiva e muito protetora, ou não o suficiente. Ela administrou isso lindamente, e eu realmente respeito isso. Éramos como um dueto, onde cada um de nós se preocupava com o que aconteceria se perdêssemos o outro. Não tínhamos muito dinheiro. Morávamos no sul de Paris, em um apartamento muito pequeno. Desde muito cedo, eu me preocupava em tentar ajudá-la financeiramente, em tentar conseguir alguns empregos. Ela sempre cuidou de mim dizendo que era muito importante para ela me dar uma educação decente. Meu pai foi um grande compositor de trilhas sonoras, Maurice Jarre. Ele compôs as trilhas para Dr. Jivago e Lawrence da Arábia.”

Qual foi a reação dos seus pais quando você começou a fazer música?

“Minha mãe era muito aberta às artes. Ela abriu meus olhos e meus ouvidos. Uma de suas melhores amigas era uma mulher totalmente louca chamada Mimi Ricard que abriu um dos clubes de jazz mais influentes de Paris, chamado Le Chat Qui Pêche, onde pessoas como Don Cherry, Artie Shaw, John Coltrane e Chet Baker tocavam. Minha mãe visitava a amiga e eu descia até o porão onde esses músicos ensaiavam. No meu aniversário de 10 anos, Chet Baker me sentou no piano vertical e tocou para mim. Essa foi a minha primeira emoção em termos de impacto do som no seu corpo, a minha primeira experiência física com a música. Sempre que penso nisso, ainda sinto o ar do instrumento em meu peito. Porque ele sabia que eu me interessava por música e me disse: ‘A melodia é muito importante, mas o mais importante é fugir da melodia o mais rápido possível. É disso que se trata o jazz. O que é importante no jazz é o som’. Isso é algo que sempre guardei em minha mente. A música eletroacústica que faço é bem próxima do jazz, porque tem tudo a ver com texturas. É tudo sobre design de som. O jazz influenciou bastante a minha vida. Meu pai e eu tínhamos uma total ausência de conflito. É melhor ter conflito com seu pai, porque pelo menos você tem alguém contra quem se defender. A ausência é algo muito mais sorrateiro, muito mais difícil de lidar. É como um buraco negro. Você tem que construir do nada ao invés de algo, ou contra algo. Nos esbarramos umas 20 vezes na minha vida. A cada vez, ele fazia perguntas, mas de maneira educada. Demorei muito para aceitar isso. Eu senti ressentimento por um bom tempo. Percebi depois — e esse é o conselho que eu poderia dar a muita gente, porque, como diz Freud, todos nós temos problemas com nossos pais, e é absolutamente verdade — que você só tem um pai e uma mãe. Faça o que fizer, você é o resultado disso. Quanto mais cedo você aceitar isso, melhor você se sentirá. Se meu pai não conseguia expressar suas emoções ou seus sentimentos – porque foi o mesmo com a minha meia-irmã, ela estava exatamente na mesma situação que eu, então não foi por minha causa – provavelmente algo que ignoramos aconteceu com meu pai quando era criança, razão pela qual ele tinha uma deficiência do lado do coração. Eu era como um filho sem pai.”

Você tinha um emprego antes de começar a fazer música profissionalmente? Quando você deixou o emprego e se concentrou na música em tempo integral?

“Eu tinha muitos pequenos trabalhos para ajudar minha mãe. Ela tinha um estande no mercado de pulgas francês, que era muito legal e divertido. O mercado de pulgas era onde você tinha muitos artistas e escritores. Eu a ajudava todo final de semana, levantando bem cedo para colocar o estande na rua. Algumas pessoas estavam vendendo pinturas. Eu pintava, mas um moleque de 13, 14 anos não tem credibilidade, então inventei um falso irmão mais velho, e fingi que estava vendendo o trabalho dele. E eu vendi parte da minha arte, então fiquei muito orgulhoso. Eu também toquei em bandas de rock. Éramos iniciantes na faculdade, ganhando algum dinheiro em clubes locais. Foi quando estudei música eletrônica no Groupe de Recherches Musicales em Paris, que realmente minha vida mudou. Comecei a ganhar dinheiro escrevendo músicas para comerciais, produzindo artistas, fazendo músicas pop, escrevendo letras e músicas para cantores. Construí uma boa reputação como letrista aos 20 anos, quando escrevi grandes sucessos na França. Fui para Los Angeles para produzir artistas franceses. Foi na época em que, se você tivesse sucessos, as gravadoras davam muito dinheiro para os músicos passar o tempo nos estúdios. Passei um tempo com os melhores músicos de Los Angeles, como Ray Parker Jr. e Herbie Hancock. Foi uma grande experiencia para mim. Aprendi muito sobre estúdios e como produzir um disco. Mas sempre tive essa ideia de criar uma ligação entre a música experimental de vanguarda e a música pop, que explorei nas minhas próprias gravações.”

Como era a cena em Paris quando você começou a fazer música?

“Quando eu era adolescente tínhamos muito contato com o rock, bandas americanas e britânicas. Naquela época existia uma casa de shows muito famosa chamada Olympia, onde tocavam muitas bandas desconhecidas. Lá foi o começo do Pink Floyd, o começo do Soft Machine, The Who. O Olympia ficava aberto a maior parte do tempo até as 4:00 da manhã. Essa foi a música da minha geração, mas não foi uma evolução. Quando entrei na música eletrônica, pensei: ‘Esta é minha própria revolução. É aqui que posso trazer algo diferente do que ouço’. Foi também no meio de todas as revoluções estudantis na Europa e nos Estados Unidos. Foi legal se rebelar contra tudo, inclusive o estabelecimento do rock. A música eletrônica para mim realmente foi a oportunidade perfeita para liderar minha rebelião.”

Qual foi a primeira coisa que você comprou quando começou a ganhar dinheiro como artista?

“Acho que foi um carro. Tenho uma paixão por carros antigos. Encontrei um carro francês dos anos 1930. Era um carro incrível. Eu estava tão orgulhoso disso. Carros e motos, especialmente nos anos 1960, eram um símbolo de fuga e liberdade, principalmente quando eram conversíveis.”

Teve algum álbum que te levou para a música eletrônica?

“Quando comecei, não havia discos de música eletrônica. Minha primeira tentativa de música eletrônica foi fazendo no laboratório do centro de música onde roubamos osciladores e filtros da estação de rádio, que eram feitos para manutenção e não para música. Éramos apenas um bando de garotos malucos fazendo música com o que era considerado máquinas, não instrumentos. E ainda são chamados de máquinas.”

Qual a última música que você ouviu?

“Pouco antes dessa entrevista, eu estava fazendo um programa de rádio chamado ‘Open Jazz’ (mais informações no Rápido & Rasteiro de outubro de 2022) para o lançamento do álbum. Teve uma sessão muito interessante falando sobre jazz, e eles tocaram uma faixa de Ella Fitzgerald. Não é necessariamente o que estou ouvindo, mas foi o que ouvi há duas horas atrás.”

Qual foi o primeiro show de música eletrônica que realmente te surpreendeu?

“Digo isso com humildade, mas foi meu primeiro show, realizado na Place de la Concorde, para um milhão de pessoas, em 1979. Foi a primeira vez que teve um público tão grande, e a primeira vez que tivemos mapeamento, com projeções gigantes em prédios, formato que hoje está muito ligado à música eletrônica. Naquela época, para tocar minha música, você não tinha muitas opções. Na Europa, pequenas salas mais para teatro, jazz ou rock. Ou esse tipo de salão multiplex onde você tinha conferências da Toyota e jogos de basquete, e você tocava música neste lugar onde você tinha vibrações muito estranhas. Eu realmente precisava de outra coisa. Esta é a razão pela qual comecei a me envolver em shows ao ar livre. Sempre gostei da ideia de ‘one-offs’. Você não tem uma segunda chance para o público ou para si mesmo. Depois da Covid, mudamos tanto os paradigmas, que estamos em outro lugar.”

A VR está influenciando muito em como você está avançando?

“Estou muito envolvido com a VR e fiz muitos shows nos últimos meses em VR. Está democratizando muito para quem tem ideias para cenografia ou arquitetura. Você não tem gravidade, então pode brincar com coisas com as quais não se pode brincar no mundo real. Pessoas que estavam isoladas por motivos geográficos, sociais ou de deficiência podem estar ligadas ao convívio com outras pessoas, existe o aspecto social disso. Quando nós apresentamos a versão beta do Oxymore no início de 2022, chamamos convidados e fãs. Depois tivemos uma sessão de perguntas e respostas. A beleza da VR é que estávamos na mesma sala e tinha um cara de Xangai, outro cara do Rio e uma garota de Manchester, muito enérgica, fazendo muitas perguntas. Conversei com ela depois e descobri que ela era paraplégica. Era a primeira vez que ela ia a um show na vida e estava dançando. Isso é algo muito bom sobre as possibilidades da VR”.

Qual é o melhor cenário para ouvir e experimentar música eletrônica?

“Por causa do período da Covid, onde todos mudaram sua relação com as interfaces digitais, o desenvolvimento da VR e do Metaverso fará parte do nosso DNA como criadores e também como público. Estou muito mais interessado em desenvolver minha música, ironicamente, e voltar ao que é o som. O que eu quero dizer com isso – e isso está ligado ao meu álbum, quando falamos sobre VR e mundos imersivos – é que todo mundo está falando sobre efeitos visuais e muito poucas pessoas estão falando sobre sons. Esquecemos que o campo visual é de 140°, onde o campo de áudio é de 360°. O estéreo não existe na natureza. Quando estou falando com você é em mono. A coisa real é a relação 360° que temos como seres humanos com nossos ouvidos e o ambiente com os sons do nosso dia-a-dia. É muito estranho que tenhamos uma relação frontal com a música. O fato de que você pode lidar com um espaço totalmente diferente é um divisor de águas. Foi o que eu fiz com o ‘Oxymore’. A especificidade de ‘Oxymore’ é que é o primeiro álbum totalmente concebido e composto desde o primeiro dia em 360°. É uma abordagem totalmente diferente para a composição musical. Nós realmente temos a sensação de que a pessoa está dentro da música, e esse é o futuro da música eletrônica.”

Você já implementou essas ideias em sua apresentação do “Oxymore”?

“O que estou fazendo para o lançamento do álbum na Europa é uma série de vitrines quase no escuro, onde não há nada para olhar. A única experiência é sobre sons e multi-canais com 20 sistemas de PA em torno do público. O lado visual será VR, onde construí uma cidade imaginária entre Metropolis e Sim City, onde vou tocar ao vivo e, ao mesmo tempo, em VR. A VR será outro modo de expressão, não enfraquecendo os shows ao vivo, mas reforçando, como o cinema reforçou o teatro.”

Você disse que manteve o componente de áudio imersivo em mente ao fazer “Oxymore”?

“Sim. Durante séculos na música eletrônica os sons que você usava foram fixados para sempre pela pessoa que inventou o piano, o clarinete, o saxofone. De repente, você pode se tornar seu próprio artesão. Esta é outra maneira de se perder. Ao mesmo tempo, é um novo território a explorar, uma nova forma de escrever e expressar a sua imaginação e as suas ideias. Senti uma enorme sensação de liberdade com esse processo. Foi um grande alívio. Se eu colocasse todos esses elementos em estéreo, lutaria muito para tentar fazer com que não ficasse uma bagunça. Cada som tem seu próprio espaço, seu próprio lugar. É como colocar a cabeça dentro de uma pintura. É muito libertador.”

O fato de o áudio imersivo deixar de ser apenas para audiófilos e se tornar muito acessível à medida que é integrado a produtos básicos de consumo, o motiva a trabalhar mais com ele?

“Sinto-me muito privilegiado por ter vivido três momentos de disrupção. O primeiro, foi o surgimento da música eletrônica. O segundo, foi o surgimento da era digital com computadores. E o terceiro, é o nascimento e o surgimento de mundos imersivos. Este é provavelmente o mais crucial. Para os jovens artistas hoje, é uma oportunidade real porque grandes momentos de disrupção são sempre muito positivos para artistas e criadores.”

Diga algo da música eletrônica atual que é muito melhor do que era no início de sua carreira musical, e algo que é muito pior?

“O que é muito melhor é que o que levaria duas horas pode levar dois segundos. Comecei com gravadores e quando queria fazer uma batida, tinha que usar tesoura e fita para editar fisicamente a fita para fazer um loop. Isso consumia bastante tempo. Agora eu só faço isso com alguns cliques. O lado ruim disso é que como tudo pode ser instantâneo, você tem cada vez menos tempo para pensar no que está fazendo, porque está quase fazendo as coisas antes de terminar o pensamento. Todo músico dirá a você que esse é o problema: o tempo entre a ideia e a realização da ideia era longo. Agora, temos o problema inverso. O lapso de tempo é bem interessante para amadurecer uma ideia, para torná-la diferente.”

Qual foi a melhor decisão de negócios que você já tomou?

Vender meu catálogo. Está de acordo com uma sensação de nostalgia, e também, redefinir e sentir-se, em certo sentido, como um iniciante. Isso me dá a liberdade de fazer o que eu quiser.”

Quem foi o seu maior mentor e qual foi o melhor conselho que lhe deram?

“Meu melhor mentor foi meu professor no Groupe de Recherches Musicales, Pierre Schaeffer, pai da musique concrète. Todo este projeto ‘Oxymore’ é uma homenagem a esta forma francesa de abordar as raízes da música eletrônica. Ao realmente lidar com sons em vez de notas e injetar a abordagem de design de som para a composição musical, as pessoas não têm ideia de quão grande é a sua contribuição na forma como estamos fazendo a música hoje. Ele me disse duas coisas muito importantes: Não hesite em ir ao inesperado, mixar o som de um pássaro com um clarinete, mixar o som de uma máquina de lavar roupa com um trombone. É disso que se trata o ‘Oxymore’. E ele disse: Não desperdice seu tempo experimentando, porque seu caminho é criar uma ponte entre a experimentação que estamos fazendo aqui neste grupo e a música pop e o público. Isso me ajudou a economizar muito tempo.”

Qual é o melhor conselho que você daria ao seu eu mais jovem?

“O que as pessoas não gostam em você, faça, porque é você mesmo.”

Sua vida daria um ótimo filme, não acha?

“Isso é muito simpático. O que você está dizendo é muito comovente. Existem duas categorias de pessoas. Uma categoria são as pessoas que pensam que sua vida é tão interessante que deveria se tornar o filme mais bonito. A outra categoria são as pessoas que provavelmente têm uma vida mais emocionante, mas nunca percebem isso porque foram o ator principal.”

Fonte: Billboard

28/10/2022| Por: Max Dax

Jean-Michel, há aqueles dias que a gente se lembra pelo resto de nossas vidas – 11 de setembro, ou o dia em que a Princesa Diana morreu. Onde você estava quando ouviu falar sobre o incêndio de Notre-Dame?

“Eu estava em casa. No meu estúdio, quando recebi um telefonema. A notícia me atingiu como um golpe. Foi um momento de paralisia e choque. Na Internet, vi o incêndio numa transmissão ao vivo. O fato de eu ter sido capaz de estar lá realmente me lembrou dos ataques ao World Trade Center. Mais uma vez, essas eram imagens de TV que estavam além do nosso imaginário coletivo. Foi isso que tornou as imagens tão poderosas. Lembro-me de pensar: isso não pode estar certo! Isso é uma piada de mau gosto. Fake news.”

Porque não poderia ser?

“Exatamente. Porque isso não poderia acontecer. Porque com o fogo que enfraqueceu Notre-Dame, nós humanos também fomos enfraquecidos, pelo menos nós povos do Ocidente.”

Eles dizem: os ocidentais não são cristãos.

“O fogo queimou além da religião. Foi mais um sinal de alerta divino dirigido à humanidade, pelo menos no Ocidente. Talvez eu até tenha que me corrigir. Então eu diria que toda a humanidade foi enfraquecida pelas chamas que foram televisionadas.”

E você provavelmente não seria você mesmo se não tivesse realizado um concerto em Realidade Virtual em uma Notre-Dame reconstruída pouco depois…

“Logo após o incêndio devastador, a pandemia da Covid nos atingiu. Outro alerta. Na França, tivemos um confinamento extremamente rígido. Acredito que havia uma ligação entre a debilitação que sofremos como humanos e o exílio que se seguiu. Eu realizei meu show para o Réveillon de 2021. Todos nós tínhamos esperança de voltar ao normal depois do inverno e que a Covid terminasse. Ainda mais: em uma fase de renascimento. Infelizmente, o renascimento foi adiado. Levará anos até Notre-Dame ser reconstruída e muitas pessoas estão perdendo a cabeça diante da pandemia em curso.”

O que realmente significa realizar um concerto no espaço virtual?

“O espaço virtual é uma grande promessa, senão uma utopia romântica. Mas é claro que também há a visão distópica. Como artista, no entanto, me comprometi a lidar com as qualidades utópicas do espaço virtual. Quando entro na Realidade Virtual, entro em território desconhecido. Na verdade, isso me lembra minha primeira viagem à China, no final dos anos 1970.”

De que maneira?

“Tudo o que eu via era novo, diferente e inimaginável. E parece semelhante quando você se gera como seu próprio gêmeo digital. E, ao mesmo tempo, há um aspecto da VR que me parece muito familiar, como se fosse do passado. O primeiro objeto VR foi o livro, o romance. Lembro-me de quando criança me teletransportar para o mundo do romance que estava lendo. Isso foi com ‘O Estrangeiro’ de Albert Camus. Imaginei o mundo, o assassinato e as pessoas em minha mente. E hoje, as crianças – que com sorte lerão livros antes de se acostumarem com os telefones celulares – sentem o mesmo quando leem Harry Potter pela primeira vez. Você imagina os rostos dos protagonistas como reais e cada leitor tem uma ideia diferente de como eles são. A Realidade Virtual do meu show em VR, com a Notre-Dame intacta novamente, é apenas uma extensão dessa experiência.”

Como você imagina seu gêmeo digital?

“Você é esse gêmeo e, ao mesmo tempo, não é. É como uma divisão de personalidade, em um sentido positivo. Sabemos disso pela arte e pela literatura, quando as pessoas assumem nomes artísticos e, de repente, sentem uma liberdade que não teriam tido sem o nome de guerra. Eu toco minha música em meus instrumentos reais, mas vejo um público que se juntou a mim de todo o mundo. E como qualquer revolução tecnológica – como a invenção da imprensa, da televisão ou da Internet – o triunfo da Realidade Virtual colocará problemas sociais.”

Mas como é tocar para um público de milhões de avatares?

“Honestamente, você esquece depois de alguns minutos. Outras coisas se tornam mais importantes. Por um lado, há o fazer da própria música. Eu me concentro no meu desempenho. E por outro lado, você não deve esquecer que, embora toque na frente de avatares, existe um ser humano por trás de cada avatar. Como avatares, eles dançam na frente do meu palco como se estivessem na mesma sala. Mas é um espaço virtual. E é claro que tudo ainda está em sua infância. Isso me lembra 1994, quando todos nós vimos sites na Internet pela primeira vez.”

Você agora deu mais um passo a frente. Paralelamente ao seu novo álbum “Oxymore”, você lançou uma cidade virtual, a “Oxyville”. Novamente, você pode ocasionalmente ser encontrado com o seu próprio avatar, e você também quer convidar avatares de artistas famosos para viver em “Oxyville” por um tempo?

“Na verdade, outro dia, quando ainda estávamos testando a versão beta da ‘Oxyville’, eu realizei uma série de pequenos concertos lá e depois me encontrei com os fãs pessoalmente – seus avatares. Conversei com fãs de Santiago do Chile e Xangai na mesma sala. Uma garota de Manchester era particularmente ágil, ela mal conseguia se conter. Percebi que ela era paraplégica e que, pela primeira vez em sua vida, tinha ido a um concerto e era capaz de interagir com outras pessoas. O Metaverso, por mais ameaçador que possa parecer, também tem esse lado bom, de pessoas que de outra forma estariam isoladas, poderem trocar ideias umas com as outras.”

Muitas pessoas criticam o Metaverso…

“O ser humano parece ter encarado o futuro com pouca esperança por séculos. Como diz o ditado: ‘Tudo era melhor no passado’. Acho que há uma explicação muito simples para isso: todos nós sabemos que vamos morrer. O futuro acontecerá sem nós. Talvez precisemos pensar no futuro como uma ameaça porque torna a perspectiva de nossa própria morte mais suportável. E o passado, por sua vez, amamos, abraçamos, porque podemos controlá-lo na forma de nossas memórias.”

O espaço virtual é neutro para você?

“Absolutamente! Como acontece com qualquer outra tecnologia, tudo depende de como os humanos pretendem usá-la. A visão distópica do futuro, vem de dentro de nós humanos, não da tecnologia que criamos.”

Por acaso você andou lendo o “Apocalipse de João” ultimamente?

“Não, mas é claro que conheço o ‘Apocalipse’. E estou lhe dizendo: não somos as primeiras pessoas a dizer que somos testemunhas oculares do apocalipse que está acontecendo. Mesmo na Idade Média, havia pessoas que não apenas acreditavam nisso, mas também o proclamavam em voz alta. Nós dois poderíamos ter tido essa conversa no início da Revolução Industrial. A diferença para o passado é que nós, ou seja, os governos, temos meios de controle e vigilância completamente diferentes à sua disposição hoje.”

Na sua música Exit, de 2016, você usou partes de uma conversa que teve com o denunciante Edward Snowden em Moscou…

“É disso que estou falando. Mas houve um clamor? O governo foi derrubado? Não. As pessoas continuam pressionando o botão ‘Aceitar todos os cookies’. O tema ‘controle’ me ocupa há muito tempo. Talvez este seja o tema do meu próximo álbum?”

Quando você aborda novos álbuns ou concertos, têm sempre de se relacionar com o universal? Sempre tem que ser sobre termos tão abrangentes?

“Meu novo álbum se chama ‘Oxymore’ – para mim, o título se refere ao termo ‘oxymoron’, ou seja, à justa posição retórica de contradições. Nesse sentido, ‘universal’ não significaria ‘pensar grande’ para mim, mas pelo contrário: ‘pensar pequeno’. Se você pensa ‘internacionalmente’, precisa pensar ‘grande’. Se você quer vender a Coca-Cola – ou uma ideia – pelo mundo, tem que buscar o menor denominador comum para ter o maior sucesso possível. Por outro lado, pensar ‘universalmente’ significa que você tem que cavar seu próprio jardim para encontrar o que conecta você como uma pessoa da Europa, com uma pessoa do Brasil ou da China. Porque nós, humanos, temos algo em comum. Quanto mais honestamente nos ouvirmos, mais claramente poderemos nos fazer entender além da linguagem. A dor conecta as pessoas mais do que a alegria. Somos amaldiçoados como humanos desde o dia em que nascemos, sabemos que vamos morrer. A criatividade e o amor são portas abertas para vivermos momentos de felicidade diante da própria morte.”

Qual papel a música e a literatura desempenham – por exemplo – em enfrentar a morte?

“Um papel gigantesco. ‘O Estrangeiro’ não foi apenas o primeiro livro que li conscientemente na minha vida. Eu provavelmente li quinze vezes desde então. E todas as vezes eu não estava apenas entusiasmado com o conteúdo, mas também com a forma. Caso contrário, eu só me sinto assim com ‘O Vermelho e o Negro’ de Stendhal e, mais recentemente, com ‘O Mapa e o Território’ de Houellebecq. Nos três casos, é a forma, ou seja, a forma como o respectivo texto foi escrito, que me interessa.”

Você também está interessado principalmente na forma de sua própria música?

“Acho que você está certo sobre isso. Porque a diferença entre ciência e arte é que na música ou na arte, você pode dizer qualquer coisa com 12 notas ou 26 letras. Mas o estilo pessoal só é criado pelo colorido individual com que você aborda as notas ou o idioma. Afinal, apesar de todas as inovações técnicas, não existe uma verdadeira evolução dos sentimentos. Ainda falamos de amor, tristeza, felicidade. O que muda é a forma como falamos das coisas, não o conteúdo.”

De volta ao “Oxymore”. O álbum tem como subtítulo “A Tribute to Pierre Henry”. Ao lado de Pierre Schaeffer, Henry foi um dos co-fundadores da musique concrète. Baseia-se na ideia de que todo barulho, todo som é música. Você pode gravar o barulho do canteiro de obras ou o canto dos pássaros e usá-los em uma composição ou em uma música – e isso se torna música.

“Concordo. Tive a grande honra de ter Pierre Schaeffer e Pierre Henry como meus dois mentores no Groupe de Recherches Musicales. Estudei com eles e, após a morte de Henry em 2017, sua viúva me presenteou com algumas fitas de gravações que ele havia deixado para mim. Fiquei muito emocionado. Eu ouvi as fitas, que continham todos os tipos de ruídos cotidianos. Na verdade, usei apenas alguns desses sons originais de Pierre Henry em ‘Oxymore’. O álbum ainda é uma homenagem a ele, pois presto meu respeito à maneira como Henry entendia o som e a composição como um tipo de arquitetura que pertencia um ao outro.”

Como você encontrou o seu tom como músico no sintetizador neste sentido? Através de conversas com os antigos mestres, ou como um trompetista, tocando para si mesmo?

“Isso é difícil de descrever. Suponho que se trata de uma sincronicidade de comprimentos de onda: os meus e os sons que sou capaz de obter de um sintetizador. Sempre que encontro um som com o qual pareço ter uma ligação, sigo esse som como um explorador. O som define a direção da minha investigação, e não o contrário.”

Existe um trompetista cujo som o tocou mais do que qualquer outra pessoa nesse sentido?

“Posso dizer-lhe de imediato: Miles Davis e Chet Baker. Se alguém me tocasse cegamente uma centena de trompetistas diferentes – eu os reconheceria depois de alguns segundos pelas primeiras notas.”

O que torna o tom deles tão único?

“Com Chet, foi a heroína. Quando criança, tive o prazer de vê-lo fazer uma serenata para mim uma vez no meu aniversário, no Le Chat qui Peche, um clube de jazz de uma amiga próxima de minha mãe, France. Passei inúmeras noites lá quando criança e adolescente. E Miles era disléxico. Ele não conseguia tocar tão rápido quanto Charlie Parker ou John Coltrane. Mas, como no Aikido, ele usou sua fraqueza e a transformou em força. Ele começou a tocar menos notas do que todos os outros. Foi um gesto revolucionário de um gênero em que os músicos até então eram julgados pelo virtuosismo e não pelo som.”

O que mais você aprecia em Miles?

“Durante o período do Black Power, ele ainda tocava muito para o público branco e era contratado por promotores brancos. Ele começou a ser pago por notas. Se você pagou menos dinheiro, ele tocava menos notas. Eu o admirava por essa atitude.”

Fonte: Frankfurter Rundschau

31/10/2022 | Por: Daniel Gumble

Quão importante foi para você que este disco “Oxymore” servisse também para ser tocado em ambientes de clubes?

“É uma pergunta interessante porque nunca pensei nisso como uma prioridade em Oxymore. O grande desafio é conseguir a dinâmica certa – o baixo, a bateria e todos os médios baixos. Ao explorar toda esta questão, pensei que seria interessante partir do básico da musique concrète – a música eletrônica sendo bastante barulhenta e abstrata – e ir para uma sensação mais groovy, club feel; ir do escuro para algo mais festivo ou mais dinâmico. E eu queria brincar com esta ideia de oxímoros e o contraste entre algumas partes mais escuras e mais brilhantes. Musicalmente, com Oxymore, também tentei cobrir os diferentes períodos de música eletrônica. No Eletro, no momento, muitas pessoas são influenciadas pelos anos 1980. Eu acho que este álbum não é nada dos anos 1980. É mais dos anos 1950 e, espero, contemporâneo. Eu tentei cobrir todas essas épocas diferentes. Por exemplo, com a faixa ‘Brutalism’, eu realmente pensei no início de Burning Techno, um Big Bang quando Berlim Techno se sentiu ligado à queda do Muro. Portanto, existe esse turbilhão brutal, violento, sombrio e dinâmico de sons. Cada faixa está, de certa forma, ligada a um período da música eletrônica, para mim.”

Quão diferente é o processo de composição hoje, em comparação com quando você começou sua carreira? “Durante séculos, nosso relacionamento com a música tem sido focal. Quando você está compondo uma orquestra sinfônica, você visualiza a orquestra sinfônica à sua frente com cordas e qualquer outra coisa. E depois disso, os caras inteligentes em meados do século XX inventaram o estéreo, e estéreo é incomum. Estéreo não existe. É falso, não existe na natureza. Quando estou falando com você, estou falando em mono; Um carro que passa é em mono, e é o espaço ao nosso redor e os ouvidos humanos que estão realmente criando a perspectiva, em termos de áudio. Ironicamente, a tecnologia hoje em dia nos permite voltar a uma maneira natural de ouvir sons, e estou absolutamente convencido de que em um futuro muito próximo, é assim que vamos ouvir música por causa do desenvolvimento do Metaverso e os mundos virtuais de VR e XR. Eu acho que jovens gerações e iniciantes na música têm muita sorte de viver hoje. Estou dizendo isso porque não é algo que muitas pessoas tendem a dizer. Geralmente é que ontem foi melhor e amanhã será pior. Esse não é o caso. O fato de que, de repente, você pode explorar a composição musical de uma maneira totalmente diferente é muito emocionante.”

Quais são os seus pensamentos sobre o que pode ser feito musicalmente no Metaverso?

“Sempre me interessei pela VR, e a Covid foi um acelerador para todas estas possibilidades. Claro que, quando falamos de mundos imersivos e virtuais, todos estão a pensar em efeitos visuais, mas esquecemos que o sentido em seres humanos que é mais sensível à imersão é a audição. O campo visual é de 140°, o do áudio é de 360°. Penso que o desenvolvimento de todas estas tecnologias para os músicos é uma grande oportunidade.”

Você aconselharia os novos artistas a começarem a pensar em fazer músicas em estéreo ou em aspectos espaciais?

“O meu conselho para os jovens principiantes de hoje seria começarem imediatamente com sons imersivos. É como se me estivesse a perguntar sobre estéreo. Acha que seria importante começar com a mono? O que é ótimo para os jovens principiantes de hoje em dia é que eles são capazes de abrir portas em territórios virgens. Recomendo-lhes que explorem todas estas novas formas de lidar com os sons e criem os seus próprios estilos. Penso que o hip-hop e o rock do futuro serão muito interessantes e vão gerar estilos de música totalmente novos. Estou absolutamente convencido disso.”

Quais são os maiores desafios que enfrenta quando compõe música desta forma?

“É totalmente diferente de compor de uma forma tradicional. Acredito que o fato de poder lidar com o espaço à sua volta torna a experiência criativa totalmente diferente, porque você pode brincar com objetos de áudio e colocá-los ao seu redor. Eu queria ir além da aparelhagem; precisamos estar no meio da orquestra. Também temos de pensar de forma diferente em termos de onde tocar este tipo de mixagem de 360°. Isso, claro, é um desafio. Quero experimentar como esta música pode ser tocada ao vivo.”

O que ainda o impulsiona como criador musical?

“É bastante misterioso. Pode ser um caso de ser curioso, e acho que, desde que sua saúde e seu corpo estejam carregando você, você pode continuar para sempre. É um grande privilégio em comparação com qualquer outro trabalho em certo sentido. E é um grande privilégio poder compartilhar sua música com as pessoas. Para as pessoas se interessarem pelo que você faz é algo único. Você nunca deve esquecer isso. Não quero ser muito filosófico, mas sempre fico um pouco decepcionado quando vejo alguns artistas dizendo: ‘Sim, eu fiz isso, mas não quero fazer entrevistas. Eu não quero falar com as pessoas ‘. Eu acho que é um grande privilégio.”

Fonte: headliner.net

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