Há exatos 60 anos, em março de 1964, uma jovem Charlotte Rampling, com 18 anos recém-completados, chamou a atenção de um diretor de elenco nas ruas de Londres e acabou convidada para fazer uma participação em um filme. O filme? Simplesmente, “Os Reis do Iê, Iê, Iê” (1964), comédia musical que marcou a estreia de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Star na tela grande, no auge da “Beatlemania”. O longa, que teve lançamento acompanhado pelo clássico álbum “A Hard Day’s Night” (título original do filme), trazia a atriz em uma figuração como uma jovem em uma discoteca. A partir daí, a britânica construiu uma carreira sólida no cinema europeu e americano, e conseguiu permanecer ativa por seis décadas. No momento, ela está em cartaz nos cinemas brasileiros com dois filmes: o drama “A Matriarca”, lançamento da semana, e “Duna: Parte 2”, maior estreia deste início de ano.
Em entrevista ao jornal O GLOBO por telefone, a esposa de Jean-Michel Jarre entre os anos de 1978 e 1997 fala sobre sua trajetória e comemora a presença dupla nos cinemas do Brasil, país que pôde conhecer melhor quando filmou a comédia “Rio Sex Comedy” (2010).
“Não sonhava em ser uma atriz. Eu pensava em ser uma jornalista, sabia que gostaria de viajar, conhecer pessoas e contar histórias. Mas uma pessoa me viu na rua e me pediu para fazer uma participação em um filme. Eu pensei: por que não?”, lembra a atriz, hoje com 78 anos. “Outras oportunidades foram surgindo, eu mostrei que tinha algum talento, era bonita, e uma coisa levou até a outra e se tornou a profissão para a qual dediquei minha vida.”
Apesar de não ter conseguido seguir carreira no jornalismo na vida real, a atriz comemora que viveu várias vidas em sua profissão. Em “A Matriarca”, Rampling interpreta uma famosa correspondente de guerra aposentada que precisa lidar com problemas de saúde e com o alcoolismo. Necessitando respirar novos ares, ela passa um tempo na casa antiga da família, na Nova Zelândia e conta com a companhia do neto Sam (George Ferrier), que não a conhecia. Inicialmente, o encontro entre os dois é repleto de amargura e violência, mas com o tempo, os dois desenvolvem uma relação que transforma suas vidas.
“Sempre gostei de histórias sobre simples relações humanas”, conta Rampling, que foi comandada pelo diretor Matthew J. Saville, em seu primeiro longa. “Gostei muito de Matthew. Ele veio da Nova Zelândia até Paris para me ver. Conversamos muito sobre o filme e trabalhamos juntos no roteiro. Coloquei minha fé nesse filme. Você precisa colocar sua confiança nas pessoas. Eu senti que ele tinha algo a dizer. Com esse tipo de projeto, você tem que apostar no seu sentimento. Você não conhece o trabalho do diretor, mas você sente que ele pode fazer algo acontecer.”
Indicada ao Oscar de melhor atriz pelo trabalho em “45 anos” (leia mais no Rápido & Rasteiro de março de 2016), e com prêmios de atuação nos festivais de Berlim e Veneza, Rampling gosta de se aproximar de suas personagens. Ela conta que pediu ao diretor que mudasse a idade de Ruth na história. Inicialmente, ela seria uma mulher bem mais velha e com a saúde mais debilitada. Partiu da atriz a vontade de interpretar uma mulher em sua própria faixa etária.
“Com todos meus personagens, eu gosto de sentir que aquela é uma vida que eu poderia levar, que eu poderia ser aquela pessoa. Dessa forma, acredito no que estou fazendo”, aponta a atriz, que já trabalhou com diretores como Luchino Visconti, Woody Allen, Sidney Lumet, Alan Parker, François Ozon, Lars von Trier e Paul Verhoeven. “Gosto de refletir as qualidades humanas que acho interessantes. Talvez eu não tivesse a coragem de viver uma vida como a de Ruth, mas ao fingir você acaba vivendo emoções reais.”
ESTRUTURA GIGANTESCA
Rampling interpreta a misteriosa Reverenda Madre Superiora em “Duna” (2021) e “Duna: Parte 2” (2024), ambos dirigidos pelo canadense Denis Villeneuve. Mas ela revela que a relação com a história começou décadas antes e com o envolvimento de Jean-Michel Jarre:
“Eu cheguei a estar envolvida com ‘Duna’ quando Alejandro Jodorowsky iria fazer, nos anos 1970. Meu marido na época, Jean-Michel Jarre, estava cotado para fazer a trilha sonora. Eu iria interpretar Jessica. Mas ele acabou não conseguindo, porque era muito difícil naquela época fazer algo tão selvagem, tão complexo”, lembra a atriz. “Sempre amei a história de ‘Duna’, eu amo o livro e sua filosofia. Foi incrível que Denis tenha me procurado tanto tempo depois de estar envolvida com a história. Ele faz esses filmes gigantescos, mas é um homem tímido e sensível, muito preocupado e atencioso com sua equipe e seus atores. Ele não quer que os atores se afoguem no tamanho da produção e sua estrutura.”
A atriz ri ao comentar sobre como é atuar de baixo de um véu quase 100% do tempo e revela que não pode falar nada sobre uma eventual presença em “Duna: Parte 3”, ainda sem previsão de lançamento.
“No primeiro ‘Duna’, temos uma cena poderosa logo no início do filme, em que ela está por trás do véu, eu cheguei a perguntar para Denis se ela iria tirar o véu em algum momento. Mas ele disse: ‘bem, acho que é interessante quando você não vê completamente uma personagem que tem um grande mistério por trás’. A seita das Bene Gesserit é muito poderosa e se mantém nas sombras. Elas não querem o poder, mas controlar quem detém o poder.”
Envolvida com o universo, Rampling se diz animada para assistir à série “Dune: The prophecy”, spin-off que explica a origem das Bene Gesserit que será lançado no streaming da Max (antiga HBO Max).
Em um momento aquecido da carreira, Rampling comemora o fato de nunca ter tido etapas de crise na profissão e se diz animada para saber o que vem por aí.
“Minha carreira está mudando, pois estou envelhecendo. Meu tempo é limitado. Não sei se tenho mais 20 anos, se chegarei aos 100, mas vivi uma vida muito boa, coloquei tudo que podia nela e estou curiosa para ver por quanto tempo irei continuar, por quanto tempo continuarei trabalhando e recebendo ofertas de coisas que quero fazer”, reflete. “Nunca fui ambiciosa, nunca quis ser uma celebridade. Sabia que queria contribuir com o cinema e compartilhar com as pessoas meu mundo emocional. É uma carreira em que ninguém pode te dizer quando parar. Pode sempre aparecer mais um filme, mais um convite e você seguir trabalhando por muito tempo.”
RIO SENSUAL
Entre 2006 e 2010, Charlotte Rampling visitou o Brasil algumas vezes para as filmagens e lançamento de “Rio Sex Comedy”, de Jonathan Nossiter, com Bill Pullman e Irène Jacob. A atriz lembra com carinho da experiência:
“Não sei se o filme foi muito apreciado no Brasil, mas foi uma experiência muito interessante e fiquei feliz de poder passar um tempo no país. A vantagem de filmar em um lugar diferente é justamente poder conhecer melhor o país. Quando você trabalha em um país, você não é mais só um turista, você se integra melhor com as pessoas”, diz a atriz, que visitou Rio, São Paulo e ilhas do litoral fluminense. “Achei o Rio uma cidade muito sensual. As pessoas se mostraram muito mais abertas do que em muitas das cidades do mundo. É um lugar lindo, com um litoral impressionante. Você se sente vivendo junto ao mar. Foi uma experiência muito poderosa. Senti um sentimento de liberdade no estilo de vida dos brasileiros que não vejo na Europa.”
Fonte: O Globo
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