JEAN-MICHEL JARRE: “SEMPRE CONSIDEREI O ESTÉREO UM PROCESSO FALSO, CRIADO NOS ANOS 30, APENAS PARA PRODUZIR UMA SENSAÇÃO DE ESPAÇO”

“MusicRadar” esteve com o lendário compositor para conversar sobre seu novo álbum ao vivo e seu fascínio pelo som imersivo e tecnologia VR

Reino Unido – 10/09/2021|Por Matt Mullen|Fotos: © Feng Hai / Loweb

Jean-Michel Jarre provavelmente dispensa apresentações. Como um dos compositores mais prolíficos e bem-sucedidos para trabalhar na música eletrônica, não é exagero dizer que ele desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do gênero nas últimas cinco décadas.

Além de seu trabalho gravado, as magníficas performances ao vivo que quebraram recordes e reuniram milhões de pessoas no mesmo lugar – enquanto desenvolvia sequenciadores inovadores e instrumentos criativos especificamente para uso no palco – se destacam como momentos marcantes em sua carreira.

Em 31 de dezembro de 2020, Jarre idealizou um espetáculo como nenhum outro. Quando o relógio se aproximava da meia-noite, ele se apresentou ao vivo em um estúdio parisiense, projetando um avatar digital em uma Notre-Dame em VR que era povoada por um público virtual, transmitindo o show para todo o mundo.

A apresentação de 50 minutos contou com o talento de uma centena de artistas e técnicos e foi vista por mais de 75 milhões de fãs. Agora, Jarre está lançando o áudio binaural do evento como um álbum ao vivo, Live in Notre-Dame VR – Welcome to the Other Side.

Antes do lançamento do álbum, “MusicRadar” conversou com Jarre sobre sua abordagem para apresentações ao vivo, seu crescente interesse em VR e tecnologia de Realidade Aumentada, e como abraçar a incerteza pode produzir resultados fascinantes.

O que há na performance ao vivo que capta o seu interesse como músico?

“É um contraponto principal ao trabalho de estúdio. Ser músico hoje em dia é uma atividade esquizofrênica; quando você trabalha no estúdio, depois de um tempo você quer sair em turnê. Então quando você está em turnê, depois de um tempo você quer voltar para o estúdio. É como andar com duas pernas como músico.

Dito isso, sabemos que muitas pessoas estão compondo músicas e não fazendo turnês. Na verdade, essa é uma questão mais ampla – hoje em dia, em termos de economia, todo mundo diz que a indústria da música só pode sobreviver por causa das apresentações ao vivo.

O que, quando você pensa sobre isso, é bastante injusto – você tem muitas pessoas que são ótimos compositores, ótimos músicos, mas eles não têm a capacidade ou não querem se apresentar no palco.

Isso é algo que, por causa da pandemia, devemos realmente pensar com cuidado. Não dando a responsabilidade para as plataformas de streaming e a economia da Internet, mas também a nós mesmos. Devemos parar de considerar a música tão livre quanto o ar que respiramos.

Eu espero que o fato de termos ficado um tempo impossibilitados de nos apresentarmos ao vivo, nos permita mudar um pouco as nossas prioridades, reconhecer que essa música em si, que você pode ouvir fora da apresentação ao vivo, tem o seu próprio valor.”

Você consegue se lembrar da primeira vez que tocou ao vivo? Onde estava e o que você tocava?

“Quando eu era adolescente, toquei em algumas bandas de rock quando tinha 13, 14 anos. Tocar ao vivo era a única maneira de compartilhar música e, claro, era muito divertido. Lembro-me da primeira vez que fizemos uma apresentação – foi uma tentativa muito humilde, com um equipamento muito bruto. Algum amplificador que um cara construiu pra mim, para minha guitarra.

André Jarre, avô
do Jean-Michel

Naquela época, meu avô era inventor e engenheiro. Na verdade, ele desenvolveu uma das primeiras mesas de mixagem para estações de rádio, e também inventou um dos primeiros toca-discos portáteis, o ancestral do iPod. Quando eu tinha 11 anos, ele me deu um gravador alemão usado. Eu estava obcecado, gravando tudo.

Um dia eu toquei a fita ao contrário e pensei que os alienígenas estavam falando comigo [risos]. A partir desse momento comecei a experimentar, processando sons com parte da minha guitarra ou órgão, com efeitos de fita. Mesmo para essas primeiras apresentações que eu estava fazendo, eu tinha esses gravadores antigos para criar esses sons estranhos.”

Por que você escolheu gravar e lançar seu último álbum ao vivo como uma gravação binaural?

“Este álbum é baseado em um projeto muito especial em que trabalhei durante a pandemia. É uma performance de Realidade Virtual ao vivo. Não é uma experiência pré-gravada, mas uma verdadeira performance ao vivo. Eu estava tocando em um estúdio de gravação no centro de Paris, e meu avatar estava tocando em uma Notre-Dame virtual, na frente de uma plateia de avatares virtuais.

Portanto, foi uma verdadeira performance multiplataforma, transmitida pela rádio, TV, plataformas de streaming em todo o Ocidente e também na Ásia. Foi seguido por 75 milhões de pessoas. Nós não esperávamos isso de forma alguma.

Sempre me interessei por processos imersivos, tanto visuais quanto sonoros. Binaural, 5.1, Áudio Espacial, tudo isso é algo com que estou envolvido há muito tempo. Acho que por um motivo muito simples: sempre considerei o estéreo um processo falso, criado nos anos 30, apenas para produzir uma sensação de espaço.

O estéreo não existe na natureza, é algo que foi criado. Na natureza, tudo é mono. Quando falo com você, estou em mono, quando alguém está tocando um instrumento, é em mono. O que cria o espaço é o espaço entre a fonte e seus ouvidos. Nesse sentido, ter vários canais mono é muito mais lógico do que qualquer outra coisa.

Foi muito difícil, até que começamos a obter resultados convincentes sem usar equipamentos muito caros. Recentemente, o progresso do binaural, que permite obter esse som envolvente com fones de ouvido, é algo que me interessou muito. Mixamos esse projeto no Innovation Studio e conseguimos uma resultado convincente.

Você sabe, é claro, que tanto a Sony quanto a Apple estão anunciando suas versões dessa tecnologia. Áudio Espacial e coisas do gênero. É um sinal dos tempos. No entanto, estou convencido de que só funcionará quando os artistas ou músicos estiverem pensando na música desde o início como feita para Áudio Espacial, produzindo e mixando-a para binaural ou multicanal. Pegar uma mixagem estéreo existente e processá-la para encaixar neste formato não funciona.”

E a Realidade Virtual? O que o levou a usar essa tecnologia para o show Welcome to the Other Side?

“Sou um grande fã de VR. Acho que será um modo de expressão muito popular no futuro. Não é apenas algo que compete com a música ao vivo. VR, AR e XR em geral, me fazem pensar nos primórdios do cinema, quando os filmes eram projetados em circos no final do século XIX.

Muitas pessoas do teatro ao vivo estavam olhando para isso como uma curiosidade, um truque de mágica, dizendo que sim, é divertido ver essas pessoas se movendo na parede, mas elas não são atores reais. Elas não estão no palco na frente de um público. E então o cinema se tornou a maior forma de arte que é hoje.

Eu acho que, para VR, não é apenas algo para videogames, é um meio real por si só. Nesse sentido, a pandemia acelerou todas essas novas formas de nos expressarmos e compartilharmos música com pessoas que estão geograficamente ou socialmente isoladas.

A emoção de se reunir no mesmo ‘lugar’, onde quer que esteja, com uma performance de VR: você está em um palco virtual, mas com um público. As pessoas estão compartilhando a mesma experiência, mas algumas estão na China, no Brasil, nos Estados Unidos ou na África e estão compartilhando as mesmas emoções ao mesmo tempo. Isso é muito empolgante e muito novo.”

Ainda parecia uma performance ao vivo, tocando em um estúdio como um avatar digital?

“O que é bastante estranho, e até quase assustador em certo sentido, é que depois de cinco minutos você esquece que não está realmente lá. Eu estava tocando com meus instrumentos reais, mas com meu fone de ouvido de Realidade Virtual ligado, e sentindo meus teclados e sintetizadores sob minhas mãos, mas também estava – sem latência – na frente de uma plateia de avatares.

Muito rapidamente, você esquece que está na frente de avatares. Essas pessoas por trás deles são reais, eles estão enviando imagens, batendo palmas e dançando como na situação real. É incrível como isso é real, é quase como estar em um filme de ficção científica. Como um mundo Matrix, mas não de uma forma distópica, mas positiva.”

Você pode nos dar uma ideia do equipamento que está usando para seus shows ao vivo no momento?

“Estou usando uma mistura de equipamentos analógicos. Eu tenho um Memorymoog, um sintetizador modular italiano, o GR-8, que é incrível. É modular, mas no lugar de cabos, esses caras usaram interruptores. É muito legal! Estou sempre usando um VCS3 da EMS. É meu bichinho de estimação [risos]. Foi meu primeiro instrumento, então sempre tenho ele no palco.

Também estou usando um instrumento que desenvolvemos, que tem uma grande tela de vidro sensível ao toque, de 1m 20 por 60-70 centímetros, que uso como um grande iPad, para controlar efeitos e sequências. Isso me lembra uma discussão que tive com muitos desenvolvedores – hoje em dia, todo mundo está obcecado em fazer instrumentos cada vez menores.

Ok, é legal ter tudo na sua mochila. Mas se você perguntar a alguém que toca guitarra, piano ou contrabaixo, qualquer instrumento – eles não estão tentando pegar um saxofone ou violino minúsculo, apenas para que possam viajar com ele em seu bolso.

Quando você está no palco, você precisa compartilhar com o público a ideia da performance. Há empolgação no envolvimento físico do artista. O corpo humano tem uma espécie de proporção. Não somos gente pequena, temos uma certa ergonomia que devemos respeitar. Tento colocar alguns instrumentos no palco que sejam de um tamanho decente.

É uma melhoria na qual os desenvolvedores devem pensar: ter uma interface adequada que não tenha apenas 20, 30 centímetros de largura. Algo maior, como um baterista ou um guitarrista, onde você pode realmente se envolver fisicamente. Para expressar com mais clareza o que você está fazendo, em vez de ser um tanto misterioso por trás de seu pequeno laptop.”

Qual você acha que é a coisa mais importante a se lembrar ao traduzir música gravada em um show ao vivo?

“Só o resultado importa. Especialmente na performance de música eletrônica, o visual é muito importante. E sua performance como artista no palco também é muito importante. É por isso que tentei criar esses instrumentos – como a harpa laser – que permitem que você realmente toque ao vivo. Tentar compartilhar um sentimento de emoção e energia vindo do palco.

Como você sabe, fui um dos primeiros a integrar, no início da minha carreira, o visual com a música eletrônica. Naquela época, isso não existia. Desde muito cedo percebi que os elementos visuais na música eletrônica são como a versão moderna da ópera, nos velhos tempos, quando os compositores clássicos trabalhavam com carpinteiros e pintores para criar uma performance aprimorada com cenografia. Isso faz parte do vocabulário da música eletrônica, e de toda música tocada no palco.

Além disso, o que é importante é a percepção de acidentes. O fato de que na performance ao vivo você deve manter essa ideia de incerteza, para que nem tudo seja planejado e pré-gravado. Lembro que há alguns anos decidimos fazer uma série de shows bem minimalistas promovendo o Oxygène ao vivo, sem MIDI, sem nada.

Basicamente, esse álbum eu gravei em um gravador de 8 pistas, então tínhamos oito elementos sendo tocados o tempo todo. Éramos uma banda de quatro pessoas, então tínhamos oito mãos. Oito mãos, capazes de tocar todas as partes totalmente ao vivo. Isso foi muito louco porque nós estávamos usando instrumentos como os antigos Mellotrons, e meu Memorymoog travava com frequência.

Em vez de esconder esses acidentes, brinquei com isso e compartilhei essa incerteza e vulnerabilidade com a multidão. E eles realmente adoraram. Adoraram porque de repente estavam experimentando um trabalho em andamento, de certo modo.”

Quais são seus planos para o próximo projeto?

“Ainda estamos em um estado de incerteza, sem saber o que vai acontecer com as apresentações ao vivo nas próximas semanas ou meses, pelo menos até o final do ano. Eu não tenho um projeto ao vivo imediato para as próximas semanas. Estou pensando seriamente em voltar aos palcos no próximo ano.

Todo esse período mudou minhas ideias para futuras apresentações ao vivo. Eu gostaria de ir para uma abordagem mais ‘phy-gital’, misturando performance ao vivo com VR e elementos de Realidade Aumentada.

Este período mudou e mudará a maneira como atuamos. Temos tantas possibilidades chegando com XR e I.A. e eu gostaria de explorar todas essas técnicas em meu próximo projeto no palco. Além disso, estarei aproveitando a oportunidade para escrever algumas músicas novas.”

Fonte: musicradar.com

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