Foi em julho de 1979 que Jean-Michel Jarre declarou publicamente pela primeira vez que gostaria de realizar um grande e espetacular concerto na Grã-Bretanha. Falando após o seu show do Dia da Bastilha na Place de la Concorde em Paris, o francês disse: “Ainda não consigo acreditar que toquei para tantas pessoas. O próximo lugar para onde iremos é Tóquio e de lá para o Central Park, em Nova York. Então pretendo levar o show para Londres”.
Entre 1982 e 1983, um projeto de concerto para o Palácio de Buckingham chegou a ser planejado, mas foi anulado por questões de segurança. Apesar das inúmeras reivindicações desse tipo nos anos seguintes, foi somente em 1987 que os planos para um concerto em Londres realmente começaram. Inicialmente planejado para ser realizado na Praça Piccadilly Circus ou na The Mall (uma importante avenida londrina), os planos mudaram após a visita de Jarre ao Royal Victoria Docks no leste de Londres. Jarre ficou muito inspirado com o local e foi a partir de lá que o show começou a tomar forma.
No início de 1987, a produtora RGE Limited foi formada especificamente para o espetáculo planejado e a data de 26 de setembro de 1987 foi agendada para uma apresentação nas docas. Apesar das extensas reuniões dos representantes da RGE, chefiados por Rod Gunner, com as autoridades necessárias, o evento foi adiado no início de julho de 1987 devido à pressão de um dos possíveis patrocinadores do projeto. No entanto, em 12 de abril de 1988, o projeto Destination Docklands foi lançado oficialmente em uma entrevista coletiva na Prefeitura de Newham (bairro de Londres), com data anunciada para 24 de setembro de 1988. “Passei anos planejando um concerto de grandes dimensões em Londres. Originalmente, seria no centro da cidade, mas as dimensões adicionais de um palco flutuante, além do visual dos arranha-céus que cercam a Royal Victoria Docks, fazem deste um local muito melhor. Nós vamos projetar lasers nos blocos das torres e o espetáculo será visível a três quilômetros de distância. Estou em contato com a área há dois anos e estou ansioso para que aconteça aqui porque é um símbolo de um renascimento arquitetônico que está atualmente varrendo a Europa”, disse Jarre na época.
O tecladista francês estava tentando acalmar o entusiasmo que cercava o show, que acabaria por causar seu fim temporário. A atenção da imprensa para o evento concentrou-se fortemente nas semelhanças deste projeto com o Rendez-Vous Houston, realizado dois anos antes, mas Jarre fez questão de dissipar essas comparações: “Não tenho certeza se o show em Docklands será maior do que o de Houston e, francamente, não estou nem aí”, disse ele. “Tudo o que estou tentando fazer é criar algo original. Esse tipo de trabalho é como montar a produção de um filme. Cada vez será uma história diferente com um roteiro diferente. Não estou fazendo uma turnê de rock normal, cada vez será um evento especial, um evento único. Estou trabalhando em Destination Docklands há quase dois anos e espero que seja algo diferente do qual nos lembraremos para sempre.”
No dia 9 de maio, a RGE Events submeteu os planos gerais ao Conselho de Newham que solicitou planos mais detalhados, o que se seguiu uma semana depois, no dia 16 de maio. Tudo estava indo bem. Foi projetado um palco flutuante com 401 m², com previsão de se movimentar de uma ponta a outra do cais diante de 150.000 pessoas pagantes, com até dois milhões de pessoas no entorno do local. As maiores arquibancadas provisórias do mundo, projetadas para acomodar 100.000 pessoas, seriam construídas em uma das margens do Tâmisa. Uma exibição pirotécnica deslumbrante seria desenhada pelo agora renomado mestre Daniel Azancot. Espelhos seriam montados no cais para refletir os lasers para os edifícios vizinhos ao largo do Tâmisa que seriam pintados de branco para receber projeções gigantescas com mais de 1.500 slides retratando a rica história da região e do país, e uma tela de projeção seria erguida para ampliar ainda mais o alcance das projeções fora do cais.
O trabalho estava em andamento nas docas para criar um anfiteatro de mais de um quilômetro de diâmetro com inúmeros efeitos de iluminação, holofotes antiaéreos da Segunda Guerra Mundial e um voo rasante de seis helicópteros “Lynx” durante a apresentação. As negociações com a Radio One para transmitir todo o concerto em FM estavam adiantadas. Até mesmo um patrocínio real parecia provável, com a possível presença da Princesa Diana. Parte da renda seria destinada para uma de suas instituições de caridade favoritas, o Great Ormond Children’s Hospital.
A equipe de produção estava confiante nesta fase de que seus meses de esforços culminariam em uma noite do maior son-et-lumiére já visto na Grã-Bretanha. No entanto, no início de julho, durante uma reunião conjunta de segurança, muitos destes planos impressionantes para o concerto fizeram soar os alarmes nas paredes do edifício do Conselho de Newham e os batimentos cardíacos dos organizadores dispararam. Até este ponto, o projeto ainda não havia recebido a licença de aprovação do Conselho, sem a qual o concerto não poderia prosseguir. As autoridades começaram a ficar preocupadas com vários aspectos:
– Os serviços de ambulância e bombeiros seriam capazes de responder a emergências?
– A infra-estrutura no local seria capaz de lidar com um fluxo de tráfego tão grande?
– Será que uma grande multidão não poderia influenciar o tráfico de drogas e a criminalidade?
– Os efeitos de laser seriam seguros?
– As fábricas químicas industriais localizadas próximas do local estariam protegidas dos vários efeitos pirotécnicos?
Os serviços de emergência listaram 31 questões no total, todas elas precisavam ser respondidas e resolvidas. Falando sobre uma das apreensões do conselho, o promotor do evento Rod Gunner disse: “Os bombeiros estão preocupados por não conseguirem levar viaturas para uma eventualidade e estão buscando uma garantia da polícia de que podem fazer isso. E a polícia não garantiria isso em nenhum dia da semana. Eles não podem garantir isso na hora do rush”.
Com o Conselho recusando continuamente a conceder a licença, parecia inevitável que a reunião do dia 9 de setembro, resultasse numa repreensão semelhante. Porém, numa última tentativa de provar ao município que todas as medidas de segurança poderiam ser cumpridas, a RGE produziu um documento de 174 páginas, detalhando as ações planejadas. No entanto, esse documento chegou ao Conselho apenas 90 minutos antes do início da reunião e por isso foram forçados a adiar sua leitura para após o fim de semana. Com os moradores temendo o pior, eles apresentaram uma petição aos membros do Conselho para persuadi-los a permitir que o show fosse realizado, mas em uma reunião tensa no dia 12 de setembro, o Conselho surpreendeu os apoiadores do show: por 11 votos a favor de reter a licença de entretenimento e 7 contrários, Destination Docklands sofreu um duro golpe. Depois da votação, do lado de fora da prefeitura, Jarre apelou ao resto da Grã-Bretanha por ajuda: “Vou lutar. Talvez para encontrar outro local. Se alguém puder me indicar um lugar, estarei lá em três semanas.”
No dia seguinte, 13 de setembro, Jarre esteve em uma emissora de TV britânica para uma entrevista e ficou visivelmente irritado com a decisão do Conselho: “Há uma grande lacuna entre a atitude das pessoas nas ruas de Newham que apoiaram este projeto nos últimos doze meses e a atitude do Conselho ontem, que foi totalmente negativa. Eu realmente considero que eles voltaram atrás em suas palavras”. Stephen Timms, presidente do Conselho, defendeu a decisão dos membros: “Cabia aos promotores demonstrar ao Conselho que o evento poderia prosseguir com segurança. Isso não foi feito e nas atuais condições não podemos dar-lhes luz verde”.
Parecia que vários membros do Conselho teriam votado contra o concerto, independentemente das medidas de segurança tomadas pelos organizadores. No entanto, houve membros que apoiaram de todo o coração a ideia do evento e conseguiram retratar um vislumbre de racionalidade entre os irracionais. Em uma carta a um jornal local, o vereador Fred Jones, líder do Conselho de Newham, veio a público para tentar entender a situação. “O resultado das manobras da Polícia e dos Bombeiros é que eles transferiram toda a responsabilidade pela segurança pública para os organizadores do Conselho. Os vereadores, por sua vez, terão de aceitar a responsabilidade ou devolvê-la aos organizadores do concerto. Isto significaria exigir-lhes que nos assegurassem que foram tomadas medidas satisfatórias para tais assuntos, sobre os quais sabemos que eles não têm controle. Todas as preocupações específicas são válidas em si mesmas. No entanto, estes problemas ocorrerão apenas em determinados momentos, em determinadas circunstâncias, em determinados locais e em determinados graus, e se os serviços de emergência nos dessem uma avaliação adequada desses fatores, então eu estou convencido de que todas as medidas razoáveis poderiam ser tomadas para garantir a segurança pública, mesmo nesta fase tardia. Ainda não é tarde demais para uma abordagem positiva por parte da polícia e dos bombeiros. Para que os membros do conselho exerçam a incrível responsabilidade por cerca de meio milhão de vidas na determinação da licença de entretenimento, não basta dar conselhos que se limitem a oferecer profecias de tragédias e tristezas.”
Apesar da decisão do Conselho de Newham, Jarre ainda insistiu que queria atuar: “Hoje estou mais determinado a fazer um show na Inglaterra, onde quer que seja. Recebemos ligações a cada cinco minutos de cidades de toda a Grã-Bretanha nos oferecendo hospitalidade”, disse ele. Glasgow, as docas de Liverpool, Manchester, Milton Keynes, Knebworth, Oxford, Wembley, Alton Towers e Edimburgo. Na época, parecia certo que o projeto realmente se afastaria de Newham. Apesar da opção de recorrer da decisão, os organizadores preferiram tentar encontrar outro local. A resposta inicial deles, na manhã seguinte, após a rejeição de Newham, foi entrar em contato com a vizinha Croydon com o objetivo de transferir o show para lá, com o magnífico cenário da usina como um grande ponto positivo. No entanto, após consulta com a Scotland Yard, foi decidido que os serviços de emergência de Londres não conseguiriam lidar com uma mudança de local num espaço de tempo tão curto. Portanto, a equipe do projeto decidiu procurar um possível local fora de Londres.
Vários membros da RGE Events viajaram pelo Reino Unido em dois dias agitados para verificar possíveis locais, usando dois helicópteros para obter as melhores vistas aéreas e passarem as recomendações para Jean-Michel Jarre. O local mais provável foi o da cidade escocesa de Glasgow, que seria uma substituta ideal. “Os franceses e os escoceses estão historicamente bem unidos. Talvez esta seja mais uma ocasião para fazer algo juntos”, disse Jarre ao chegar a Glasgow que fez todos os esforços para conquistá-lo, levando o francês e os seus assessores para uma visita guiada pelos principais locais da cidade. A equipe de Jarre ficou entusiasmada com Glasgow que tinha locais semelhantes ao de Docklands. O Festival de Jardins da cidade foi de particular interesse e inspiração para Jarre, pela combinação envolvendo água, paisagem envolvente e edifícios de fácil acesso.
No entanto, enquanto estava em Glasgow, no dia 15 de setembro, surgiram notícias de que, após um artigo no jornal “Daily Mirror” do dia anterior pedindo a realização do concerto, o Conselho de Newham estava se preparado para discutir a possibilidade de reabrir as negociações, embora alguns funcionários do Conselho estivessem ainda buscando desculpas pelos comentários. após a decisão de recusar uma licença. O promotor Rod Gunner ficou encantado, dizendo: “Se isso for verdade, é uma ótima notícia. Sempre quisemos Docklands e todo o nosso trabalho de dois anos foi dedicado a isso. Teríamos o maior prazer em conversar com Newham a qualquer momento e em qualquer lugar”.
Antes de voltar para Newham, Jarre ainda estava claramente interessado em Glasgow como uma opção possível de local para um concerto, comentando: “Mesmo que eu consiga salvar a apresentação em Londres, estou me comprometendo com outra apresentação no norte da Grã-Bretanha. Encontrei pessoas muito motivadas em Glasgow e tem um local muito interessante lá”.
A equipe voltou para Londres no mesmo dia e após reuniões no dia seguinte com os serviços de emergência, parecia que Newham teria um capítulo final e finalmente a oportunidade de organizar o evento. Em comunicado conjunto à imprensa emitido pelos oficiais dos Serviços de Emergência e Eventos de Newham e a RGE, eles concluíram: “Várias propostas foram feitas pela RGE que têm algum significado para superar os problemas de segurança pública fora do local. Está previsto que uma decisão final seja tomada o mais breve possível”. Assim, embora não se tenha chegado a uma decisão definitiva, as negociações continuaram.
Os dias seguintes foram dedicados à resolução dos problemas que levaram o município a rejeitar a candidatura inicial e foram traçados planos para a realização de dois concertos separados nos dias 8 e 9 de outubro, de forma a tentar aliviar as preocupações de uma assistência esmagadora de público, embora houvesse sugestões de que isso duplicaria os problemas, com toda a área fechada durante dois dias inteiros em vez de apenas um. No entanto, os planos foram formalmente apresentados na hora do almoço do dia 21 de setembro, para apreciação, mas sem decisão, que poderia ser tomada até a próxima reunião do Comitê de Planejamento na semana seguinte. Os promotores só puderam prosseguir com o trabalho renovado de engenharia do local e esperar o melhor que tinham para tentar completar três meses de construção em pouco menos de três semanas. Em 23 de setembro, a emissora de televisão LWT transmitiu um documentário de 25 minutos na série “The London Programme” sobre o projeto Docklands, examinando o que houve de errado e prevendo, a partir de uma fonte não oficial, que a licença de entretenimento desta vez seria concedida.
A atmosfera antes da segunda reunião de planejamento, no dia 28 de setembro, para considerar a licença, era significativamente diferente. Falando antes da reunião, Jarre descreveu-se como “otimista e cauteloso” e tentou dissipar a atenção que a mídia deu ao público esmagador de seus shows anteriores, comentando: “Temos muitos contatos e me envolvi muito nestes últimos dias para tentar explicar do que se trata realmente este projeto em termos de questões de segurança, para trabalhar com engenheiros civis e tentar perceber que tipo de preocupações eles têm para resolvermos juntos. Acho que o grande público não é o aspecto mais positivo do meu trabalho no momento. Muitas pessoas e a mídia falaram sobre um milhão de pessoas e acho que foi criada muita confusão e por causa disso, medo e preocupação. O projeto Destination Docklands é totalmente diferente do projeto de Houston e o Texas é bem diferente de Newham. Houston está bem no meio de uma terra de ninguém, não é a mesma coisa”.
Com todas as negociações já realizadas, a decisão foi carimbada na reunião do Conselho, com 9 votos a favor para a realização dos concertos e 7 contrários. Uma decisão desconfortavelmente apertada, embora os especialistas do Conselho recomendassem que o concerto agora pudesse ser considerado seguro, desde que os trabalhos de engenharia fossem adiante. Socando o ar, o produtor Francis Dreyfus ficou claramente entusiasmado, e uma tremenda comemoração irrompeu da câmara pelo público que se aglomerava na galeria pública. Jarre ficou exultante, dizendo: “Esta noite houve um grande sentimento de confiança entre todas as partes envolvidas e sinto-me realmente muito afetuoso com o povo de Newham. É um enorme alívio depois de todo o trabalho e estou muito feliz que o povo de Newham possa pensar nisso como algo próprio. Depois de todos os problemas de segurança, estou muito feliz e aliviado que o show possa continuar agora”.
As condições meteorológicas durante todo o período do evento foram extremamente desfavoráveis e tipicamente britânico, com fortes rajadas de vento, baixas temperaturas e chuvas intensas, principalmente na segunda noite. Os concertos foram assistidos por cerca de 100.000 pessoas em cada noite, sendo que 30.000 estavam sentadas nas arquibancadas e outras 70.000 estavam de pé, sem incluir as pessoas que assistiram nas ruas circundantes, ouvindo o primeiro concerto em uma transmissão simultânea pela Radio One.
A escala do evento foi maior do que qualquer outra vista no Reino Unido. A história da região foi contada com músicas dedicadas à revolução industrial e à futura regeneração do local. Foi como se a área desértica de Docklands tivesse sido transformada por duas noites em um teatro industrial, futurista e multimídia, que uniu a música e a visão eletrônica de Jean-Michel Jarre, com a paisagem monótona das docas numa perfeita harmonia psicodélica, simbolizando a mutação das antigas cidades europeias.
Fonte: Conductor of the Masses Issue 8
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